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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

[REVIEWS ANTIGAS] Como Haibane Renmei se tornou um dos meus favoritos.

Contém spoilers da série.


Haibane Renmei ganhou um lugar no meu coração.

Foi um caminho estranho. Quando deparei com ilustrações do ABe para Haibane, e já há algum tempo desde que as vi e então fui atrás do trailer, senti um desconforto enorme com a paisagem desbotada e pinceladas tão carregadas na mesma arte. Apesar de acostumado às ilustrações de Serial Experiments Lain, causou um embrulho no estômago.
Mais recentemente, há cerca de uma semana quando fui atrás de trailers, abertura e encerramento do anime - talvez movido pelos recorrência dessa impressão desconfortável, percebi que não era mesmo o estilo de arte responsável por colocar essa pulga atrás da orelha, mas as cores. Em boa parte do tempo, Haibane transita entre verdes pouco vibrantes e azuis-marinho, compondo impressões etéreas mesmo nos cenários mais ordinários imagináveis, os mais básicos dessas animes de histórias de fantasia.
Mas cenário, por si só, não sinalizava desleixo, falta de competência dos produtores nem nada do que costuma causar os muitos vícios da mídia. Na verdade, deixa-lo ordinário é uma prática tão deliberada que podemos encontrá-la subvertida em várias situações em razão de articular para propósitos narrativos posteriores, e essa foi uma das surpresas que levou Haibane Renmei a conquistar seu lugar entre meus favoritos.
A começar pelo worldbuilding, aparenta não ter muito a oferecer, e é ótimo!
O anime trata da morte, mas não propõe discuti-la da forma como induz a pensar inicialmente. Nosso primeiro vislumbre é de uma menina vestindo branco, caindo do céu, dividindo a tela com um corvo e descrevendo sensações. Nesse início, a semântica direciona para uma tipicidade de estória contada do ponto de vista dessa personagem após sua morte. Assim como imagens promocionais também sugerem por mostrá-la com uma auréola brilhante, pequenas asas nas costas e roupas brancas; signos convencionalmente atribuídos à seres do além-vida por influência de imagens de contexto místico/religioso em referências ocidentais (embora estas sejam muito subvertidas em anime).
A sugestão é de que ela morreu, e então veremos uma resposta para esta pergunta que nos assola: o que vem depois?
Haibane Renmei não é uma série sobre o depois, mas sobre os tão belos, efêmeros e preciosos momentos terrenos, e como devemos aproveita-los a partir da nossa incerteza.
Interpretar Haibane através de convenções como "purgatório", "céu", "limbo" e outras conceituações pouco tangíveis é um delírio tão grande quanto a cega busca por atravessar a grande muralha daquele mundo. De fato, Rakka busca uma resposta nos livros disponíveis na cidade, muitos alí buscaram durante toda a vida por conhecimento de além das muralhas, mas a história não tarda a frear nossa curiosidade a respeito desses tópicos, mostrando como o conhecimento que obteremos dentre o limitado tempo que temos é diminuto frente à devastadora efemeridade da vida, por isso o nosso saber será sempre limitado.

Reki expressa nos últimos episódios:

 "Não há algo como eternidade. Tudo acaba cedo ou tarde. Assim como deve ser. Porque o agora é apenas agora. E este momento... é tão valioso."

O mundo de Haibane Renmei possui pouquíssimos atrativos. Nada é feito para parecer muito interessante. Nem a comida, nem as roupas, nem mesmo as atividades para se aproveitar. Há um trabalho louvável de composição para que o mundo seja sentido conforme a protagonista se vê deslocada, contrastando formidavelmente com a familiaridade de cada um dos lugares mostrados alí.
Old Home, local de nascimento de Rekka, é um exemplo muito adequado de como o genérico pode ser subvertido através de detalhes tão sutis quanto o desenho das janelas, portas e cadeiras à medida que se distinguem das peças mais usuais de computação gráfica compradas em estoque, com as quais nos acostumamos. Isso faz da casa um lugar especial, qual não permanece o mesmo conforme os acontecimentos moldam a convivência dentro da casa, assim como as próprias personagens.
A relação de cada personagem com a finitude passa por algumas fases. Começa no medo e aceitação do abandono, passa por uma espécie de síndrome de "culpa dos sobreviventes", e durante esse tempo vemos como cada uma sente responsabilidade de ir antes, depois ou escolher sua hora de alguma maneira.
São temas abordados com tato mesmo àqueles que se perdem na dor.
Reki irá sensibilizar diante dos comportamentos impensados da protagonista, por ser mais experiente. Ela pode ser turbulenta diante de pequenas confusões mas firme em situações de emergência, e isso será colocado à prova quando a mesma se vê forçada a lidar com sua pior face.
Tudo muda, tudo nos muda. O nome das penas de carvão muda quando são capazes entender um outro devir nelas mesmas. Recebemos nomes ao nascer, os quais não condizem com quem somos pois não permanecermos os mesmos após recebe-los. Nomes serão tão imprecisos em significado conforme o tempo muda as coisas quanto as rotulações de outros e de nós mesmos. Podemos tentar nos definir a partir de nossas falhas mais visíveis para que ninguém use-as para nos envergonhar. Podemos tentar negar o que há espontaneamente em nós, esconder, atar e nos odiar por pecados ao acreditar nisso. Mas a verdade é que ninguém nunca poderá se perdoar enquanto acreditar que o pecado que cometeu no passado ainda o descreve hoje.
A lição de Reki, apesar de levá-la ao seu fim naquele mundo, não é o mesmo que escolher morrer. Rakka continua vivendo mesmo após sua realização como pena de carvão, pois naquele mundo não há como escolher partir. Em nossas vidas, por outro lado, não há algo como "hora certa", mas Haibane usa dessa diferença crucial entre nossa realidade e esse pequeno universo ficcional para nos mostrar com clareza o que é importante para deixar ir, e fazer as pazes com o final. Reki se foi, mas suas pinturas permanecem na casa como um resquício do que foi capaz de produzir para as pessoas com quem conviveu ao longo de sete anos em Old Home. Uma pequena contradição ainda provoca.
Apesar de tanta incerteza, a vida se dá através de um caminho estreito, cujo antes foi perdido, e o depois é um mistério. Estas limitações, tão penosas quanto às mudanças inerentes ao caminhar, tornam cada passo tão precioso quanto aqueles com quem o dividimos.

Um comentário:

  1. Adorei esse e alguns outros textos que você escreveu. Se me permite analisar, vejo você interpretando (algo que eu penso ficar apenas na na superfície quando focado apenas em descifrar as coisas), porém, não focando apenas nos mistérios aparentes ou não dá obra, mas expondo ao mesmo tempo escolhas formais e coisas que são aparentes que tem impacto direto em Haibane Renmei. Pois convenhamos, Haibane realmente não se garente apenas por seus significados implícitos.

    Eu gostaria de ter contato com você de alguma forma e convidá-lo para uma nova proposta que pretendo aplicar no site que administro.

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