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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Interpretando FLCL: Adolescência e os tipos de abuso em relacionamento.

Contém spoilers da série.

Uma das experiências mais marcantes enquanto começava a explorar os animes da década de 2000 foi FLCL.


Mal fazia ideia, até então, de como um OVA poderia acabar me atropelando como este fez. Um impacto sem noção, como estimá-lo por exaltar sua relação com a linguagem, a forma como transita entre gêneros para falar de relacionamento e, antes de tudo, o mais efervescente resquício de impressão pairando todo o arranjo: uma atmosfera excelentemente implementada.


De início, em roteiro, narra sobre o abandono estabelecendo-o como conflito primário por via de um ângulo condizente. Naota é um moleque perdido, confuso, sobretudo frustrado com tudo e todos; acompanhado de uma garota mais velha que está na idade de frequentar o Ensino Médio (mas não faz), convivendo-o como um mendigo e qualquer cachorro que se convida a adotá-lo, ou vice-versa.


Expõe-se que a menina é ex-namorada do irmão mais velho de Naota, e a partir daí suas interações sugerem o entendimento dessa ligação unilateralmente como anestesia do sentimento de perda, o qual vem sendo afogado desde quando o rapaz se mudou para o exterior. É o exato sentimento imposto desde a primeira cena: debaixo da ponte, às margens de um riozinho sujo e sem horizonte, por conta da fumaça de uma grande fábrica que acomete a cidade de Mabase.


O cenário não é destrinchado em nenhum momento, mas há significado suficiente atribuído por uma ironia paradoxal incutida nos breves comentários sobre o contexto geral de seu universo, tal como o humor nos dá a maior ideia do “chão” em FLCL - enquanto a dramatização dos conflitos internos é tão desvairada quanto poderia ser. Assim também opera a dualidade dos adolescentes e adultos, de quem leva a sério suas brincadeiras ou brinca de se levar a sério, respectivamente.


Por tudo isso, a “chaminé” apresenta-se como epicentro da narrativa por estabelecer uma ponte da melancolia adolescente à loucura dos adultos, sendo a fumaça um elemento que impõe literalmente uma atmosfera, tão deprimente e desvairada quanto essa indústria em formato de ferro de passar roupa comandada por alienígenas, e que também é “[...]um lugar para se trabalhar, pois não há entrada e nem saída”.


Quando Haruhara Haruko expõe isso, roubando a cena e acelerando tudo com sua motoca, sejam as estradas, a música, seja a narrativa em si. Faz-se o diabo necessário, como quem quebra o ritmo quando as coisas começam a desacelerar para dar espaço às angústias das demais personagens enquanto subverte o andamento da inundação pela melancolia quando falta desespero na "cidade onde nada acontece". Isso é contrastado com o surto piromaníaco de Mamimi, percebendo-se tão avulsa ao próprio contexto, ou até mesmo à realidade - como segue da forma pela qual sua caracterização insere "amortecedores psicológicos" - que chega ao ponto de provocar um incêndio tentando encontrar algo mais elevado para suprir sua necessidade de pertencimento.


São rimas em sintonia com essa atmosfera gerando em efeito uma confusão tão próxima da puberdade, a qual se destaca como a metáfora quase por óbvio, mas prestando somente como instrumento daquilo que irá se discutir no desenvolvimento da série. Conforme Naota divide interesse entre essas duas figuras femininas quase opostas (notem que optaram não trazer uma mãe no elenco), a sucessão de eventos vai desencadear o surgimento de um "portal" em sua testa. É uma piada duvidosa que dá a luz um robô com cabeça em forma de televisão chamado Canti, a quem entendemos como analogia para o 'adulto ideal'. Ele surge como forma de equilibrar a presença das duas personagens e responder isso nos termos "swing the bat" como analogia para o crescimento e também uma síntese de como o protagonista pensa que os outros o enxergam.

Dessa forma, o robô reúne o conflito em ambas deuteragonistas na sua relação com a figura adulta. Enquanto Mamimi o idealiza , Haruko, quem se vê presa aos dezenove anos, quer se tornar Canti. Conforme uma usa esse adulto perfeito para escapar da realidade, a outra quer usurpá-lo, usar o poder para se beneficiar de alguma forma, por isso mesmo Haruko se interessa em gerar portais com sua guitarra.


E se os portais são amálgamas dos fenômenos despertos por Haruhara no corpo do garoto e as concepções 'alienígenas' concebidas a partir das explicações dos adultos já enlouquecidos (além disso, os portais ou chifres são abertos "em crianças que tentam demais" - mas não apenas crianças por constituição física, conforme descobrimos posteriormente), fica claro como a verdadeira ponte entre loucura e o sentimento de estar perdido é a relação da protagonista com as novas reações do corpo. Sendo assim, é a ponte mas não o tema.


Com isso, Amarao torna-se uma personagem simbólica mais relevante. Suas sobrancelhas representam um costume dos garotos do interior, de pendurar algas na testa para parecerem mais velhos e mais másculos. Portanto, além de reforçar a posição caricata dos adultos, é possível inferir suas falas como as de alguém que "tenta muito" - chegaremos lá em instantes.



Prosseguindo com suas analogias explícitas, o anime comenta a relação de Naota e Mamimi falando dos gatos.


"Gatos gostam de ser acariciados e paparicados. Algum de vocês se sente assim, às vezes?"


Depois dessa fala, Naota fará papel de gato numa peça teatral, então, o anime atira para uma direção totalmente diferente da qual apontou. A relação parasitária com a garota do ensino médio é comentada tangencialmente pela interação com Ninamori, a filha do prefeito, na dinâmica da peça. O garoto nega o papel de gato tanto frente à chantagem de Ninamori como deuteragonista, como também será mais tarde para com Mamimi. É interessante pontuar que nesta última ocasião a garota aparece literalmente vestida de gato.
 
No entanto, apesar da postura obstinada do menino, sua "felinidade" emerge a partir de outro fenômeno bizarro (quase psicossomático) quando ganha orelhas, cujas quais ele tenta esconder assim como os portais na testa. Mas dessa vez seu comportamento frente às reações involuntárias para certas interações colocam-no em estado de maior vunerabilidade ao invés de conceder-lhe superpoderes como antes, algo até mais enfadonho como analogia.
 
Furi Kuri estabelece, dessa forma, outra vértice ao tratar dos relacionamentos, separando a relação emocional parasitária do descobrimento, porque Naota agora tem mais de uma referência e, com isso, um discernimento, o qual lhe incumbe certa frustração. Isso fica claro quando Ninamori vai à casa do menino e passa a ter falas cada vez mais incisivas sobre seu papel na peça, e depois conta um segredo sobre si mostrando óculos para ganhar confiança, mas conforme a investida desaba ao pleno desconforto, subentende-se como as peças se encaixaram na mente dele.
Ninamori é uma personagem dissimulada em quase todas as ocasiões. Seu 'papel' de influência naquele microcosmo presumidamente se estabeleceu com base numa certa aparência, e descobrimos também como a 'atuação' foi valorizada como sinal de maturidade por todos à volta da menina desde quando ela se lembra. No entanto, quando é preciso ter outra pessoa para atuar, assim como seus pais fazem, surge a ideia de que o as ações e as intenções podem não se relacionar mesmo quando parece haver intimidade. Ela própria conta como o Gato de Botas "esconde quem ele realmente é, e finge ser outro alguém pra sempre, mas no momento em que se torna aquela pessoa, sua mentira se converte em verdade, certo?".
Por ter sido educada sobre esses preceitos, e viver diariamente sob várias máscaras, Ninamori entende na prática como é fazer um papel dissidente de suas reais intenções. Naota, ao ganhar essa nova lente, percebe como fazer o papel de seu irmão mais velho é diferente do tipo de afeição que deseja receber, e isso rapidamente desencadeará uma revolta contra Mamimi.

A conclusão do episódio demarca uma virada importante no arco de Ninamori, mas também é o pontapé inicial para a atitude decisiva na virada para o terceiro ato abarcando todo o elenco.
 
Em sua imaturidade, Naota pensa em usar o orgulho para lidar com a manipulação. Os gatilhos de orgulho são representados pela indentação do mecanismo de uma arma como recurso visual incisivamente. À vista disso, o garoto acaba se tornando mais violento, ao passo em que armas, decapitações e outros símbolos tornam-se mais presentes. A reação contra Haruko é a mesma, pois ela passa a representar uma verdade sobre Naota da forma mais escancarada possível, a qual o próprio ostensivamente rejeita. Enquanto o menino se vê frustrado por ser reduzido à personalidade do próprio irmão, ocupando um papel passivo quando seu desejo é explorar mais dos próprios interesses numa relação 'adulta', dentro do próprio paradigma, Haruhara é absolutamente investida em seus desejos, então sequer tenta disfarçá-los como os outros adultos fazem.  
Mais tarde, quando Naota encontra Amarao, quem inimiza Haruko e esclarece, em parte, os objetivos da personagem (mesmo distorcendo as informações limitado por suas "sobrancelhas másculas"), ele confirma o fato de Haruhara Haruko ser uma agente intergaláctica à terra com objetivo de buscar Atomsk, um ser ultra poderoso guardado num robô pela Medical Mechanica. Em determinado momento a agente descobre em Naota o potencial escondido para abrir um portal capaz de trazer Atomsk. No entanto, Amarao conceitua erroneamente as intenções de Haruko por subestimar a ambição de uma mulher e assume, por conta disso, que ela estaria apaixonada por Atomsk.

No entanto, o menino tinha um discernimento maior, por isso viu além daquilo que um obcecado vigiando a agente intergaláctica conseguia entender sobre ela. Haruhara pode acabar ferindo Naota com suas intenções, e pode ter pensado em descartá-lo quando tudo estivesse feito, mas mesmo no processo ela deu tudo que faltava na vida garoto, diversão, lutas de robô e um até mesmo um irmão mais velho de volta. Por tudo isso, o garoto decide ignorar os objetivos dela e ser honesto com o que ele esperava da amizade entre os dois. Ele é só uma criança, no fim das contas.
 
Os últimos momentos do anime acentuam o fim de todos os arcos, e são o ápice da diversão que o garoto queria. Ninamori aparece pela última vez completando um arco, numa metáfora visual tão literal que chega a ser hilário (parece até coisa do yuasa). Enquanto isso Mamimi passa a alimentar seu rancor na forma de um cachorro robótico até um ponto no qual ela não consegue mais controlar, eventualmente percebendo como usar ou manipular alguém mais fraco não é diferente de depender de um ombro mais forte, pois quando ambos vão embora, o que sobra nela mesma é um forte sentimento de impotência.

O garoto, por sua vez, imerge a loucura de Haruhara numa grande epifania até se tornar capaz de libertar Atomsk para fora do planeta, entendendo como ele próprio tem o direito de ser espontâneo, mesmo se for egoísta, porque nem sempre as expectativas de um único lado se concretizam. Às vezes a gente só quer se divertir e não precisamos de desculpas pra isso.
Ser infantil, no fim das contas, é o que salva o garoto. Haruko sai em busca de Atomsk nos confins do espaço, numa conclusão que serve à trama, à semântica da personagem, e à imensa qualidade dos sakugas nessa sequência explosiva que fecha a série.

 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

[REVIEWS ANTIGAS] Monogatari Series: Assumindo sua pretenção, proeminência e ambiguidade.

Contém altíssima pretensão.

Embora a influência da chamada “cultura otaku” já não seja mais somente endêmica de sua terra de origem ou mesmo do oriente há muito tempo, é notório como a percepção do anime enquanto produto estrangeiro demonstra-se relevante sob a lente de um seletivo público estrangeiro em diversos casos. Digo isso porque o exotismo percebido acerca da mídia lhe confere uma imunidade retroativa — diferente das vezes em que o olhar sobre o produto relaciona-se aos propósitos de consumo — e apesar de uma parcela do público cuja adoração oriunda deste nicho alegar-se alicerçado numa suposta cultura mística, indecifrável e intraduzível; fica dúbio se não congregam tão somente do consumo e isto é justamente onde se torna ambíguo, se me permite dizer. Por essas e por outras razões foi-se construindo um enorme gatekeeping acerca do anime, que vez e outra se vê perpassado à beira de um sucesso capaz de emergir para fora dessa comunidade, enquanto ainda tem gente discutindo se anime é ou não é desenho. Pensando nisso, curioso como um dos maiores sucessos (mesmo sendo este, bastante polarizante) dentro do meio em questão, sem ao menos ‘furar a bolha’ seja Bakemonogatari. Por quê? Porque nele há um dos textos autorreferenciais mais críticos por aí. O anime não apenas dispõe de uma penca de metalingagem avessa ao apelo imediato das imagens, como faz uso de sua recorrência, em conjunto com o desmonte de uma realidade com perspectiva axial (quase nunca aterrissando além de sua fragmentação) para permitir esta imposição de ângulos como proposta estética. Podemos dizer que tudo na construção das cenas fala em favor de um ponto de vista através do qual somos introduzidos àquela estória; como indica o som de câmera, olhos piscando, ou até mesmo as linhas de diálogo em painéis estroboscópicos. São fatores quais nos designam a seguir recorrendo sempre a uma perspectiva muito pessoal, mas acima de tudo, seguindo o próprio autor. O anime constrói, nesses termos, uma mimese fraca, volúvel e, portanto, narrativamente versátil — para então falar da mídia e também de si mesmo. Por isso não é incomum ver alguns personagens se comparando a arquétipos seguindo idiossincrasias da própria indústria e então discutindo-se, ou até mesmo brincando com nosso senso de realidade a partir das muitas voltas que o autor prescreve para o texto. E isso tudo só funciona, narrativamente, pois à medida em que o cenário se distancia da realidade, torna-se cada vez mais expressivo e pessoal, por isso evoca uma atmosfera tão onírica quanto intimista. Monogatari não tenta estabelecer um mundo coerente, mas, ao invés disso, trabalha sobre um universo mental capaz de aproximar-se ao máximo do sentimento desejado através de cores, cortes rápidos e mudanças bruscas de estilo. Faz sentido adaptar dessa forma por conta da natureza das light novels, ou seja, para que o enredo sempre se submeta ao olhar do autor. Por vezes, os diálogos são puramente expositivos, contudo, mantêm-se coerentes com o texto pois o emaranhado narrativo permite com que esse tipo de construção opere em vias de incorporar a percepção mais particular das personagens. Então, por tudo isso, o metatexto se traduz como algo natural dentro da obra. Faz com que o perceber-se não seja um elemento insólito, mas adjunto a uma expressão própria, evidentemente problemática e que não seria discutida se o Shinbou não escolhesse traduzir dessa forma. No entanto, o anime não deixa de ser um produto e servir aos propósitos que acusamos de servir no fim das contas. Pensando em como os impulsos inconscientes manifestos — seja a partir do espaçamento dessa realidade pós-moderna qual evoca um senso de suspensão às interações mais básicas ou pelo tom que o diretor escolhe dar em situações específicas, ainda é notório como recorrentemente são carregados em subtom de recompensa (fanservice, se preferir). O que não surpreende se tratarmos isso como uma tradução das ambiguidades e trocadilhos duvidosos no texto do próprio Nisio Isin. É algo que, para ser levado como mérito, precisa ser entendido como aquilo que representa na prática: estranhezas. Sabendo Monogatari e seu método narrativo, não é sequer uma ideia nova pensar nas ambiguidades como conflito, pois esta dimensão do texto incorpora seu desenvolvimento tão naturalmente quanto as quebras da quarta parede o fazem, até para com as piadinhas desimportantes. E por tudo isso, admiti-las pode amplificar a concisão temática tão fortemente quanto encabula os momentos ébrios. É uma via difícil, considerando o quanto a dissolução de certas ações enquanto se confundem com pensamentos soltos, por impedirem a análise crítica de suas consequências práticas. Diferentemente de expressões do inconsciente mais palpáveis como o “chamado para o vazio”, o qual desperta um impulso de afastamento por meio do impensável, e apesar de ser um processo tão difuso, tem lá suas implicações sobre a forma como reagimos, por como despertamos depois de imaginar coisas absurdas como arremessar um bebê da janela do carro ou um celular no meio do rio. O inconsciente de Nisio Isin tem outras propriedades, seja para falar do amadurecimento ou em virtude do tom; comparativamente, é uma escolha ambígua, conveniente e, no fim das contas, é o preciso ambiente mental que Araragi deve navegar para encarar a problemática subjacente de suas próprias decisões. Isto porque a expressão de seu amadurecimento só pode ser totalmente compreendida sob a ótica de um inconsciente bem distante de qualquer eixo moral, embora sua racionalidade de escolha opere consistentemente num princípio de falso altruísmo. É através deste contraste que entendemos o paradoxo de suas intenções, quando o texto une forma e conteúdo. É exatamente este princípio que não nos permite ignorar as situações duvidosas, as quais se traduzem na direção do Shinbou com uma consciência sobrenatural do teor perverso e acidental de certas cenas, tão comuns no universo das adaptações de light novel e, por esse motivo, também muito sintomáticas do imaginário otaku. É o que faz sentido, pensando no amadurecimento do Araragi, e por fazer sentido demais, é uma qualidade moralmente repreensível em sua totalidade, mas responsável por compor uma obra tão concisa. É mais provável que, dentre todos os interessados em adaptar Monogatari, o aclamado diretor do estúdio Shaft ainda seria o mais próximo das ideias de Nisio Isin para com seu próprio texto. Isto pois, até chegarmos na existência de seu estúdio, a carreira de Shinbou mal tivera seus produtos autorais, e até aquele ponto trabalhando com produtos das adaptações feitas para otaku em todo o seu glorioso pretexto, é ainda mais crítico nos desvios e no amadurecimento gradativo do texto de Monogatari. De fato, por mais que pareça bobo, às vezes, para amadurecer frente as nossas contradições, como autor e como pessoa, é tão simples quanto olhar pra mídia, olhar pra si, aprender a rir de si mesmo e seguir em frente.


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

[REVIEWS ANTIGAS] Como Haibane Renmei se tornou um dos meus favoritos.

Contém spoilers da série.


Haibane Renmei ganhou um lugar no meu coração.

Foi um caminho estranho. Quando deparei com ilustrações do ABe para Haibane, e já há algum tempo desde que as vi e então fui atrás do trailer, senti um desconforto enorme com a paisagem desbotada e pinceladas tão carregadas na mesma arte. Apesar de acostumado às ilustrações de Serial Experiments Lain, causou um embrulho no estômago.
Mais recentemente, há cerca de uma semana quando fui atrás de trailers, abertura e encerramento do anime - talvez movido pelos recorrência dessa impressão desconfortável, percebi que não era mesmo o estilo de arte responsável por colocar essa pulga atrás da orelha, mas as cores. Em boa parte do tempo, Haibane transita entre verdes pouco vibrantes e azuis-marinho, compondo impressões etéreas mesmo nos cenários mais ordinários imagináveis, os mais básicos dessas animes de histórias de fantasia.
Mas cenário, por si só, não sinalizava desleixo, falta de competência dos produtores nem nada do que costuma causar os muitos vícios da mídia. Na verdade, deixa-lo ordinário é uma prática tão deliberada que podemos encontrá-la subvertida em várias situações em razão de articular para propósitos narrativos posteriores, e essa foi uma das surpresas que levou Haibane Renmei a conquistar seu lugar entre meus favoritos.
A começar pelo worldbuilding, aparenta não ter muito a oferecer, e é ótimo!
O anime trata da morte, mas não propõe discuti-la da forma como induz a pensar inicialmente. Nosso primeiro vislumbre é de uma menina vestindo branco, caindo do céu, dividindo a tela com um corvo e descrevendo sensações. Nesse início, a semântica direciona para uma tipicidade de estória contada do ponto de vista dessa personagem após sua morte. Assim como imagens promocionais também sugerem por mostrá-la com uma auréola brilhante, pequenas asas nas costas e roupas brancas; signos convencionalmente atribuídos à seres do além-vida por influência de imagens de contexto místico/religioso em referências ocidentais (embora estas sejam muito subvertidas em anime).
A sugestão é de que ela morreu, e então veremos uma resposta para esta pergunta que nos assola: o que vem depois?
Haibane Renmei não é uma série sobre o depois, mas sobre os tão belos, efêmeros e preciosos momentos terrenos, e como devemos aproveita-los a partir da nossa incerteza.
Interpretar Haibane através de convenções como "purgatório", "céu", "limbo" e outras conceituações pouco tangíveis é um delírio tão grande quanto a cega busca por atravessar a grande muralha daquele mundo. De fato, Rakka busca uma resposta nos livros disponíveis na cidade, muitos alí buscaram durante toda a vida por conhecimento de além das muralhas, mas a história não tarda a frear nossa curiosidade a respeito desses tópicos, mostrando como o conhecimento que obteremos dentre o limitado tempo que temos é diminuto frente à devastadora efemeridade da vida, por isso o nosso saber será sempre limitado.

Reki expressa nos últimos episódios:

[REVIEWS ANTIGAS] Reassistindo Tatami Galaxy - Será que é bom mesmo?

Contém spoilers da série.



Durante o último final de semana eu estava catalogando os animes que assisti nos últimos meses na tentativa de decidir qual seria a minha próxima aposta na mídia. Decidi que tentaria me agarrar a narrativas longas, depois de muito tempo, sabendo que haviam experiências muito significativas em por aí de 10 a 13 episódios bem debaixo do meu nariz, e o quão tentador seria assistí-las só para poder falar que conheço. Isso me fez lembrar de um exemplo que combina perfeitamente com a procrastinação disfarçada de perfeccionismo na minha busca por recomendação, então decidi revê-lo. É um anime que fala sobre isso, se chama Tatami Galaxy.

Este é o terceiro e último trabalho de Masaaki Yuasa ainda na Madhouse. Diretor que mais tarde faria Devilman Crybaby e Ping Pong The Animation, adaptações de mangá conhecidas por serem ousadas e muito distintas. A descrição aqui não é muito diferente, mas Tatami Galaxy é uma adaptação de novel e, por isso, há uma diferença crítica na forma como ele distribui informação e trabalha o ritmo.



O seriado do qual estamos falando se diferencia como trabalho estilístico logo em sua camada mais básica. Isto é, o anime apresenta paredes e mais paredes de texto, em conjunto com uma conceituação visual densa, ao ponto que, apesar de muito significativa, me faz duvidar do quanto ele considera a nossa capacidade de assimilação relevante na composição de cada uma das cena. Pois o anime é rápido, e te dá pouquíssimo tempo pra pensar sobre o que está sendo exposto, algo que, por razões óbvias, está muito além do que o material original possivelmente iria proporcionar.



Aqui, Yuasa propõe esse rítmo acelerado em conjunto com um trabalho de cor que beira o exagero. Os visuais nos inserem na mais absoluta subjetividade em favor da caracterização do protagonista - e da comédia em alguns momentos. Isso ocorre, em maior parte, a partir de decisões de design que expõem visualmente seus preconceitos, momentos de insegurança, e até sua libido em determinado ponto da estória. Acredito que é feito para que, posteriormente, todos esses elementos sejam subvertidos no intuito de explicitar uma mudança de paradigma que fecha a trama de uma forma mais impactante. Mas que tipo de trama nos vemos aqui?


Inicialmente, a trama gira em torno da escolha de clubes. Se trata de uma decisão que separa nosso protagonista, o Watashi, de seu maior objetivo: a “vida universitária cor-de-rosa”. Mas ele começa tendo contato quase exclusivamente com um único rapaz desenhado com uma cabeça em forma de cebola, que se chama Ozu, e parece se atormentá-lo bastante. Mas Watashi é determinado, e pretende encontrar um lugar para pertencer enquanto graduando.


A partir disso nós acompanhamos os diferentes caminhos possíveis do protagonista em direção à vida idealizada e suas trágicas consequências a cada episódio, mas com uma estrutura episódica, ou seja, consistentemente retornando ao ponto de partida, até que as coisas começam a ficar complicadas. O roteiro o carrega para decisões românticas, que por serem mais complexas em sua natureza, também desaguam em uma série de conclusões desesperadoras. No entanto, o protagonista insiste em culpar seu colega Ozu, e se convence de que está amaldiçoado a conviver com ele, o próprio diabo. Também se convence de que tudo vai dar errado e ele não conseguirá uma vida cor de rosa independente de qualquer escolha em sua condenada existência nessa terra.  É muito triste, não é mesmo? Pois então...


Daí em diante o ritmo desacelera, Watashi passa a olhar para as possíveis realidades de forma ainda mais pessimista, os caminhos passam a ser representados na forma de um labirinto composto por incontáveis versões cinza de seu próprio quarto, do qual ele não consegue sair por estar andando em círculos atrás da versão cor-de-rosa, numa galáxia 4 de tatamis e meio.


Ele falou o nome!
É o nome do anime!


Então, conforme ele procura por diferenças sutis entre as realidades, finalmente se depara com consistentes pistas sobre os seus colegas, e isto culmina na revelação de que, pasmem: eles na verdade tem suas próprias vidas, interesses, e não fazem o que fazem somente para amaldiçoar Watashi, conforme ele mesmo se convenceu. Isto é o ponto de virada mais importante e também o mais óbvio tanto para a estrutura narrativa quanto para o tema, uma vez que nós já haviamos visto uma série de fragmentos multicoloridos, e nenhum deles é cor-de-rosa e nem inteiramente cinza. O final do anime não pareceu só bobo nessa segunda assistida, mas também colocou uma pulga atrás da minha orelha por conta de um único detalhe, o qual já citei anteriormente.


Assim que Watashi decide aceitar a vida com todas as cores, e sai do labirinto de quartos, a aparência de QUASE todas as personagens muda, com exceção da Akashi, que é consistente em todos os fragmentos com os quais a gente se deparou. ocorre que, a partir do momento em que nosso personagem principal conhece as motivações de Ozu e os outros através de sua experiência mística é possível entender que a aparência deles muda para representar uma mudança de paradigma, e é difícil entender outra coisa porque a arte de Tatami Galaxy é consistentemente congruente com as impressões e os preconceitos do Watashi a cada episódio. Mas qual é o intuito por trás de manter a Akashi “superficial” como os outros? Significa que o protagonista via ela como uma pessoa completa desde o início? 


Julgando pela diferença de estilo, eu diria que não. Além disso, o anime acaba com as palavras do Watashi, dizendo que não vale a pena mostrar o relacionamento deles, por não acreditar que existe algo tão sem graça quanto uma história de amor que deu certo...


E a partir daí as coisas começam a não se encaixar.

Se interpretarmos que a galáxia de quartos representa uma tentativa do personagem principal em revisitar suas escolhas, e isto o impedia de seguir em frente aceitando sua realidade, já que ele culpava as pessoas ao seu redor pela maioria das situações desastrosas, então qual o sentido de manter o design de Akashi com o viés subjetivo assim como os outros costumavam ser?


Precisamos considerar que a mudança de Watashi ocorre quando ele aceita as eventuais infelicidades da vida (numa situação que só possibilitou ESSA saída) ao perceber que os “culpados” tem suas próprias perspectivas e infelicidades, conhecendo-os e mudando a sua perspectiva a respeito deles. Como ele não mudou sua perspectiva a respeito de Akashi, ele poderia culpá-la por tudo que dá errado, assim como fazia com os outros, mesmo não almejando uma vida cor-de-rosa. Ela não apenas está sendo idealizada no final dessa estória, como é protegida por fios do destino que separam os dois convenientemente ao longo de todos os outros contos, simbolizado pelo chaveirinho que o Watashi pendurou na corda da lâmpada. Ou seja, eles não ficam juntos na trama quando poderia dar errado, apesar de considerar uma história que deu certo desinteressante.



Manter a Akashi com o mesmo design é uma escolha tal que, pra bem ou pra mal, só pode existir no Anime. Mas qualquer uma das versões dessa narrativa termina com um casal que se conhece pouco, apesar de não ter expectativas tão altas para o futuro. Terminamos com a impressão de que dá certo, porque o catalisador mágico em forma de chaveirinho sempre impede que Akashi tenha qualquer impacto negativo na vida do protagonista, ou que ambos se conheçam o suficiente. Também é fácil imaginar que caso isso acontecesse nada daria errado, pois quando há atrito, sempre pesa para as decisões de Watashi, como nunca ocorre quando Ozu, Higuchi ou Masaki, ou qualquer outro personagem entra em conflito com ele.


Ainda pensando nas decisões de direção, os visuais da Akashi foram fiéis (o que poderia, mas não melhora o enredo, e também não piora nada em comparação com o material original). No entanto, as escolhas de ritmo são infinitamente mais impactantes, e agora parecem muito mal justificadas.


O anime possui tantos monólogos, tão acelerados, sob o pretexto de "simular o desespero de ler um livro muito grande", segundo o próprio Yuasa.


É uma decisão que dá muita personalidade pro anime, o que foi importante para a carreira dele como diretor. Tatami Galaxy é muito chamativo, e com certeza tem muito mais energia e ambição que a maioria dos animes que estreiam toda temporada. Conhecendo os trabalhos mais recentes do diretor, é possível compreender como Tatami Galaxy serviu de base para as adaptações de mangá mais ousadas e cheias de estilo, pelas quais ele é conhecido e prestigiado. No entanto, para a trama que está sendo adaptada aqui, e para um argumento tão simplório, esse exercício de estilo beira o desperdício.

O ritmo, as cores vibrantes e as caricaturas funcionam MUITO BEM em função da comédia nesse anime, mas contribuem pouquíssimo com o significado da estória.

Eu admito que gostaria de ver mais estórias adaptadas da mesma forma que Tatami Galaxy, e acho justo valorizar o quão “diferente” ele é do padrão absolutamente tedioso produzido em grande quantidade todos os anos, mas definitivamente não foi um trabalho de direção acertado, não para uma trama tão boba.


 É uma trama simples, e o resultado é um anime, apesar de tudo, divertido.

Interpretando FLCL: Adolescência e os tipos de abuso em relacionamento.

Contém spoilers da série. Uma das experiências mais marcantes enquanto começava a explorar os animes da década de 2000 foi FLCL. Mal fazia i...