
Contém spoilers da série.
Contém spoilers da série.
Uma das experiências mais marcantes enquanto começava a explorar os animes da década de 2000 foi FLCL.
Mal fazia ideia, até então, de como um OVA poderia acabar me atropelando como este fez. Um impacto sem noção, como estimá-lo por exaltar sua relação com a linguagem, a forma como transita entre gêneros para falar de relacionamento e, antes de tudo, o mais efervescente resquício de impressão pairando todo o arranjo: uma atmosfera excelentemente implementada.
De início, em roteiro, narra sobre o abandono estabelecendo-o como conflito primário por via de um ângulo condizente. Naota é um moleque perdido, confuso, sobretudo frustrado com tudo e todos; acompanhado de uma garota mais velha que está na idade de frequentar o Ensino Médio (mas não faz), convivendo-o como um mendigo e qualquer cachorro que se convida a adotá-lo, ou vice-versa.
Expõe-se que a menina é ex-namorada do irmão mais velho de Naota, e a partir daí suas interações sugerem o entendimento dessa ligação unilateralmente como anestesia do sentimento de perda, o qual vem sendo afogado desde quando o rapaz se mudou para o exterior. É o exato sentimento imposto desde a primeira cena: debaixo da ponte, às margens de um riozinho sujo e sem horizonte, por conta da fumaça de uma grande fábrica que acomete a cidade de Mabase.
O cenário não é destrinchado em nenhum momento, mas há significado suficiente atribuído por uma ironia paradoxal incutida nos breves comentários sobre o contexto geral de seu universo, tal como o humor nos dá a maior ideia do “chão” em FLCL - enquanto a dramatização dos conflitos internos é tão desvairada quanto poderia ser. Assim também opera a dualidade dos adolescentes e adultos, de quem leva a sério suas brincadeiras ou brinca de se levar a sério, respectivamente.
Por tudo isso, a “chaminé” apresenta-se como epicentro da narrativa por estabelecer uma ponte da melancolia adolescente à loucura dos adultos, sendo a fumaça um elemento que impõe literalmente uma atmosfera, tão deprimente e desvairada quanto essa indústria em formato de ferro de passar roupa comandada por alienígenas, e que também é “[...]um lugar para se trabalhar, pois não há entrada e nem saída”.
Quando Haruhara Haruko expõe isso, roubando a cena e acelerando tudo com sua motoca, sejam as estradas, a música, seja a narrativa em si. Faz-se o diabo necessário, como quem quebra o ritmo quando as coisas começam a desacelerar para dar espaço às angústias das demais personagens enquanto subverte o andamento da inundação pela melancolia quando falta desespero na "cidade onde nada acontece". Isso é contrastado com o surto piromaníaco de Mamimi, percebendo-se tão avulsa ao próprio contexto, ou até mesmo à realidade - como segue da forma pela qual sua caracterização insere "amortecedores psicológicos" - que chega ao ponto de provocar um incêndio tentando encontrar algo mais elevado para suprir sua necessidade de pertencimento.
São rimas em sintonia com essa atmosfera gerando em efeito uma confusão tão próxima da puberdade, a qual se destaca como a metáfora quase por óbvio, mas prestando somente como instrumento daquilo que irá se discutir no desenvolvimento da série. Conforme Naota divide interesse entre essas duas figuras femininas quase opostas (notem que optaram não trazer uma mãe no elenco), a sucessão de eventos vai desencadear o surgimento de um "portal" em sua testa. É uma piada duvidosa que dá a luz um robô com cabeça em forma de televisão chamado Canti, a quem entendemos como analogia para o 'adulto ideal'. Ele surge como forma de equilibrar a presença das duas personagens e responder isso nos termos "swing the bat" como analogia para o crescimento e também uma síntese de como o protagonista pensa que os outros o enxergam.
Dessa forma, o robô reúne o conflito em ambas deuteragonistas na sua relação com a figura adulta. Enquanto Mamimi o idealiza , Haruko, quem se vê presa aos dezenove anos, quer se tornar Canti. Conforme uma usa esse adulto perfeito para escapar da realidade, a outra quer usurpá-lo, usar o poder para se beneficiar de alguma forma, por isso mesmo Haruko se interessa em gerar portais com sua guitarra.
E se os portais são amálgamas dos fenômenos despertos por Haruhara no corpo do garoto e as concepções 'alienígenas' concebidas a partir das explicações dos adultos já enlouquecidos (além disso, os portais ou chifres são abertos "em crianças que tentam demais" - mas não apenas crianças por constituição física, conforme descobrimos posteriormente), fica claro como a verdadeira ponte entre loucura e o sentimento de estar perdido é a relação da protagonista com as novas reações do corpo. Sendo assim, é a ponte mas não o tema.
Com isso, Amarao torna-se uma personagem simbólica mais relevante. Suas sobrancelhas representam um costume dos garotos do interior, de pendurar algas na testa para parecerem mais velhos e mais másculos. Portanto, além de reforçar a posição caricata dos adultos, é possível inferir suas falas como as de alguém que "tenta muito" - chegaremos lá em instantes.
Prosseguindo com suas analogias explícitas, o anime comenta a relação de Naota e Mamimi falando dos gatos.
"Gatos gostam de ser acariciados e paparicados. Algum de vocês se sente assim, às vezes?" |
No entanto, apesar da postura obstinada do menino, sua "felinidade" emerge a partir de outro fenômeno bizarro (quase psicossomático) quando ganha orelhas, cujas quais ele tenta esconder assim como os portais na testa. Mas dessa vez seu comportamento frente às reações involuntárias para certas interações colocam-no em estado de maior vunerabilidade ao invés de conceder-lhe superpoderes como antes, algo até mais enfadonho como analogia.
Furi Kuri estabelece, dessa forma, outra vértice ao tratar dos relacionamentos, separando a relação emocional parasitária do descobrimento, porque Naota agora tem mais de uma referência e, com isso, um discernimento, o qual lhe incumbe certa frustração. Isso fica claro quando Ninamori vai à casa do menino e passa a ter falas cada vez mais incisivas sobre seu papel na peça, e depois conta um segredo sobre si mostrando óculos para ganhar confiança, mas conforme a investida desaba ao pleno desconforto, subentende-se como as peças se encaixaram na mente dele.
A conclusão do episódio demarca uma virada importante no arco de Ninamori, mas também é o pontapé inicial para a atitude decisiva na virada para o terceiro ato abarcando todo o elenco.
Em sua imaturidade, Naota pensa em usar o orgulho para lidar com a manipulação. Os gatilhos de orgulho são representados pela indentação do mecanismo de uma arma como recurso visual incisivamente. À vista disso, o garoto acaba se tornando mais violento, ao passo em que armas, decapitações e outros símbolos tornam-se mais presentes. A reação contra Haruko é a mesma, pois ela passa a representar uma verdade sobre Naota da forma mais escancarada possível, a qual o próprio ostensivamente rejeita. Enquanto o menino se vê frustrado por ser reduzido à personalidade do próprio irmão, ocupando um papel passivo quando seu desejo é explorar mais dos próprios interesses numa relação 'adulta', dentro do próprio paradigma, Haruhara é absolutamente investida em seus desejos, então sequer tenta disfarçá-los como os outros adultos fazem.
Mais tarde, quando Naota encontra Amarao, quem inimiza Haruko e esclarece, em parte, os objetivos da personagem (mesmo distorcendo as informações limitado por suas "sobrancelhas másculas"), ele confirma o fato de Haruhara Haruko ser uma agente intergaláctica à terra com objetivo de buscar Atomsk, um ser ultra poderoso guardado num robô pela Medical Mechanica. Em determinado momento a agente descobre em Naota o potencial escondido para abrir um portal capaz de trazer Atomsk. No entanto, Amarao conceitua erroneamente as intenções de Haruko por subestimar a ambição de uma mulher e assume, por conta disso, que ela estaria apaixonada por Atomsk.
Os últimos momentos do anime acentuam o fim de todos os arcos, e são o ápice da diversão que o garoto queria. Ninamori aparece pela última vez completando um arco, numa metáfora visual tão literal que chega a ser hilário (parece até coisa do yuasa). Enquanto isso Mamimi passa a alimentar seu rancor na forma de um cachorro robótico até um ponto no qual ela não consegue mais controlar, eventualmente percebendo como usar ou manipular alguém mais fraco não é diferente de depender de um ombro mais forte, pois quando ambos vão embora, o que sobra nela mesma é um forte sentimento de impotência.